Você deve esta se perguntando, o que é Coram Deo? O que isso significa?
Muitos cristãos não conhecem, ouviram, ou mesmo tiveram contato com a palavra Coram Deo. Isso acontece devido há muitos fatores, um deles, é o distanciamento de uma geração de crentes do cristianismo histórico, da sua própria história e da tradição intelectual da igreja, fazendo de suas experiências empíricas a única forma de entender a vida e a realidade de Deus. Mas esse não é foco desse pequeno artigo. Quero aqui, de uma forma direta, te ajudar a descobrir e entender o que de fato significa Coram Deo.
Afinal, o que é Coram Deo?
Coram Deo é uma palavra em latim, usada principalmente durante a reforma protestante no século XVI. A sua tradução significa “diante de Deus”. Mas o que nos impressiona é fato do quão profundo é o conteúdo filosófico e teológico por trás das palavras. Seu foco principal é promover a consciência do que é uma vida cristã, sua essência e consequências. Porque viver na presença de Deus, perante Deus, sob a autoridade de Deus e para a glória de Deus vai muito além do “lugar secreto”.
A história cristã é marcada por muitas lutas e controvérsias. Irmãos que deram suas vidas – seguindo exemplo do seu Senhor, Jesus – para que a verdade pudesse ser transmitida e permanecesse. Das “grandes” lutas travadas por esses irmãos, está a noção do Senhorio de Cristo. Às vezes, até uma forma honesta, irmãos pensavam que a vida cristã era uma guerra entre dois mundos, de luta do bem contra o mal. E de dois reinos e dois reis.
Sagrado e o profano
No período medieval era muito comum a ideia de dividir a vida e a realidade entre o sagrado e o profano; entre o religioso e o não religioso. A distorção dessa verdade promoveu um tipo de espiritualidade, mas parecida com neoplatonismo, aristotelismo e muitos outros “ismos” da filosofia clássica. E no período do iluminismo isso foi de fato “sistematizado” pelos cristãos, como uma forma de reação a tudo que estava acontecendo, diante de uma espiritualidade que não conseguia conectar a mensagem do evangelho com a vida, foi quase que inevitável a prática dessa dicotomia da vida, fazendo da vida cristã, da vida sacra “o mundo separado dos cristãos”. Então, foi contra esse tipo de pensamento reducionista que os reformadores protestaram afirmando que todos nós vivemos na presença de Deus, e que a vida é Coram Deo.
Lutero afirmava que:
“A existência humana é vivida coram deo, diante de Deus ou na presença de Deus.” Perguntaram a Lutero: “O que um sapateiro convertido poderia fazer para servir melhor à Deus e ser um cristão melhor.” Lutero respondeu: “Faça um bom sapato e venda por um preço justo”.
Calvino falou coisas muitos semelhantes. Destacou que em todas as dimensões da vida, os seres humanos têm “negócios com Deus”.
Imago Dei
Precisamos ter a consciência de que todas as pessoas, apenas por serem humanos, são a imagem de Deus (Imago Dei). São responsáveis diante de Deus por tudo o que são, fazem e pensam.
Cada pessoa vive coram deo, isto é, perante a face de Deus, e assim é responsável diante dele por todo pensamento e ação. Todos os homens vivem diante Deus, aceitam isso ou não, acreditam nisso ou não. Pense comigo, alguém regenerado pela obra Cristo, como deveria viver diante de tal realidade?
Viver a vida inteira na presença de Deus é entender que absolutamente tudo o que estamos fazendo e onde quer que estejamos fazendo, nós estamos agindo debaixo do olhar fixo de Deus. Por isso, tudo que o homem faz, o faz para a glória de Deus ou para a sua desonra.
Deus: a referência de tudo
Por isso, o conhecimento de Deus tem que nos levar para uma vida coram deo. Conhecer a Deus não afeta só a nossa teologia, ela afeta todas as áreas do saber e do viver humano. Sendo Deus a referência para todas as coisas que nós conhecemos. Portanto, uma vida cristã precisa ser uma vida coram deo. Uma vida não apenas pautadas nas experiências empíricas ou “sobrenaturais”, mas porém, uma vida Teoreferente! Isto é; ter a Deus como referência de tudo.
Se Deus é referência de tudo que eu conheço, então a leitura que eu faço de todas as coisas tem um ótica teológica, ótica cristã, é coram deo.
O teólogo holandês Herman Bavinck diz :
“Desta graça comum (a providência de Deus para todos, crentes e incrédulos) procede tudo o que é bom e verdadeiro que ainda vemos no homem decaído. A luz ainda brilha nas trevas. O Espírito de Deus vive e trabalha em tudo o que foi criado. Logo, ainda permanecem no homem certos traços da imagem de Deus. Há ainda intelecto e razão; todas as espécies de dons naturais ainda estão presentes neles. O homem ainda tem percepção e uma impressão da divindade, uma semente da religião. A razão é um dom inestimável. A filosofia é um dom admirável de Deus. A música também é um dom de Deus. As artes e as ciências são boas, proveitosas e de alto valor.”
Dualismo
Concluo que, embora não estejamos na era medieval e nem na época do iluminismo, um olhar para grande parte da igreja hoje, vemos que o coram deo é algo que se perdeu. A maioria dos crentes de nossa geração vive um cristianismo que é totalmente divorciado da sua experiência de realidade. É um cristianismo subjetivo, que só é percebido, ou vivido, quando a pessoa está na igreja, servindo em algum ministério, ou quando está fazendo missões transculturais, fazendo da vida e da vida cristã uma dicotomia prática. É muito comum vermos cristãos, em geral novos convertidos, falando a seus pastores: “quero muito servir a Deus, há alguma vaga em algum ministério para mim?”.
Assim, há uma supervalorização das atividades consideradas “espirituais” e uma negligência com relação às atividades chamadas “seculares”, como o estudo, o trabalho, a família e as outras responsabilidades que, em tese, não estão diretamente relacionadas à nossa fé.
Com o “sapateiro” perguntado a Lutero, poderia servir a Deus fazendo sapatos. Afinal, o que sapatos têm a ver com o Reino de Deus? A questão é que o Reino de Deus não se resume às atividades realizadas na igreja, mas envolve tudo o que fazemos, falamos e pensamos. Tudo deve estar debaixo do senhorio de Cristo. Toda nossa vida é para a glória de Deus, todo nosso ser, todas as áreas que possamos atuar ou vivenciar está debaixo da glória de Deus e devemos usá-las para honrar e glorificar a Deus!
Coram Deo: tudo para a glória de Deus
Como nos ensina Abraham Kuyper nessas duas falas históricas:
“Não há um único centímetro quadrado em todos os domínios de nossa existência, sobre os quais Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: É meu!”
Portanto, devemos viver para glória de Deus, por meio do que somos e do que fazemos. Como ensinaram os apóstolos Paulo e Pedro:
“Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus” (1 Coríntios 10:31).
“E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai.” (Colossenses 3:17)
“Se alguém fala, fale de acordo com os oráculos de Deus; se alguém serve, faça-o na força que Deus supre, para que, em todas as coisas, seja Deus glorificado, por meio de Jesus Cristo, a quem pertence a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Amém!” (1 Pedro 4.11)
Soli Deo Gloria!